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Psicologia Arquetípica

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Post by wodouvhaox Fri Jan 14, 2011 8:59 am

[(Co)mo]vendo a Psicologia Arquetípica

A Psicologia Arquetípica foi fundada na década de 1960, em Zurique, pelos analistas junguianos James Hillman, Rafael Lopez-Pedraza, entre outros (Berry, Giegerich, Stein etc.). O movimento surgiu dentro da escola junguiana, porém, com algumas diferenças às conceituações metafísicas e hermenêuticas de seu fundador Carl Gustav Jung e de seus seguidores.


Jung, por muitas vezes escrevia ao longo de sua obra, que usava conceitos metafísicos e filosóficos somente a serviço da compreensão da psique. Ele declarava-se um empirista e por vezes, um fenomenólogo, com preocupação nas manifestações da psique. Apesar de sua psicologia ter sido fundada em conceitos como Si-mesmo, totalidade, teoria dos opostos, compensação e individuação, no sentido de uma integração psíquica e uma unidade, foi ele um dos primeiros autores a se filiar à psicologia dissociacionista de Pierre Janet, que mais tarde, possibilitou o desenvolvimento da teoria dos complexos, ilhas psíquicas com altas concentrações emocionais. Dentro dessa concepção a psique tem uma natureza plural e dissociada.


De acordo com Quintaes (2008), após dirigir o centro de estudos do Instituto C. G. Jung, em Zurique, por 10 anos, Hillman afasta-se intempestivamente da comunidade junguiana, criando uma relação “tensa e delicada” com ela. Seu trabalho passa a ser visto com reserva, e seu pensamento crítico se distancia da maioria dos grupos oficiais.


Consideramos que Hillman, ao se afastar da perspectiva junguiana, fica com a pedra fundamental da psicologia de Jung: a teoria dos complexos. Passa a afirmar e radicalizar, em sua produção, a pluralidade da psique, seguindo as pistas deixadas por Jung. Dentre as muitas e ricas fases da produção de Hillman, a que mais nos interessa aqui se dá, principalmente, na década de 1970, e é herdeira direta da teoria dos complexos.


A fase do pensamento deste autor, na década de 1970 (embora ele recuse veementemente que sua obra seja pensada em fases), caracteriza-se por um pensamento crítico e “revisionista” da obra de Jung e de seus conceitos, principalmente o caráter metafísico da noção de arquétipo


Ao afastar-se da Metafísica, ele radicaliza o trabalho com às imagens (Hillman, 1977, 1978, 1979), fundando a diferença do termo “arquetípico”, usado por sua escola. Isto marca uma importante distinção entre os dois tipos de pensamento e evidencia a retórica jocosa do autor.


Ao usar o termo “arquetípico”, Hillman subverte o conceito de arquétipo em Jung e propõe um movimento do substantivo (arquétipo) em direção ao adjetivo (arquetípico).


Hillman não se preocupa com a coisa em si, considerando toda busca de origem uma fantasia metafísica. Sua preocupação volta-se para o fenômeno e para a experiência. Ele atém-se à manifestação arquetípica, à imagem arquetípica que passa a ser definida por seu valor. É uma operação que implica função, depende de um valor, de sua qualidade de afetar. Samuels (1990), resume o arquetípico como “aquilo que afeta”. Esta é a passagem do substantivo ao adjetivo: a imagem depende de uma perspectiva, de um olhar, “de como se vê e não do que se vê.”


Segundo Knox (2003), o conceito de arquétipo aparece na obra de Jung sob os seguintes aspectos: como entidade biológica que provê informações e padrões de comportamentos; como uma ideia platônica (eidos), carregando representações, significações ou imagens universais, nas quais ancora o conceito de inconsciente coletivo, como molduras mentais organizadoras, sem conteúdo ou representação. Ou seja, como forma, mesmo que ainda de maneira muito limitada; e, por fim, como entidade metafísica eterna, inacessível per se e, por isso, fora do campo da psicologia.


Apesar das reformulações, Jung não abandonou a ideia de uma estrutura, forma, elemento vazio ou possibilidade dada a priori na maneira de ser de uma representação. Isto é, não abandonou o caráter kantiano do conceito.


Hillman (1977) estava menos preocupado com essa faceta do arquétipo, atentando especialmente para as imagens consteladas na psique. Considerando as imagens como manifestações diretas de arquétipos, elas são o que realmente chega à psique: são fenômenos psíquicos e, ao mesmo tempo, sua matéria-prima, é com este material que que opera o trabalho analítico.


Seguindo a tradição junguiana: psique é imagem, Hillman, como um fenomenólogo, se afasta de alguns traços marcantes da teoria precedente e busca a fenomenologia das imagens, única maneira possível, ao seu ver, de acessar a experiência psicológica.


Para a Psicologia Arquetípica, uma imagem pode ser arquetípica ou não. Trata-se de um fator que não depende de hierarquia, procedência coletiva ou ligação com um arquétipo, mas depende do valor dado pelo indivíduo que é atravessado por ela. O arquetípico, então, não é uma categoria ou substantivo. É, sobretudo, uma operação de valor. Em outras palavras, um movimento que se faz em direção à imagem, uma atitude de atenção e comprometimento com suas potencialidades metafóricas, ou sua profundidade.


Com o postulado deixado por Jung (1999 [1971]): “ficar com a imagem”, a Psicologia Arquetípica funda-se com uma ética da imagem, uma proposta de implicação do indivíduo com as imagens que o acometem. Esta ética significa uma atitude de comprometimento e construção, a partir do que nos advém: as diferentes vozes, as vontades contrárias, os impulsos estranhos ao ego, ou seja, a partir da multiplicidade do psiquismo, a seguinte pergunta se impõe: O que isso quer de mim?


A teoria de Jung anunciou uma base poética da mente, exercida na imaginação ativa. É uma psicologia que não começa na fisiologia, na linguagem ou na estrutura da sociedade, mas sim nos processos da imaginação. Ao declarar que a psique cria realidade todo dia, e a isso dá-se o nome de fantasia, Jung (1999 [1971]) cunhou a realidade psíquica sobre as imagens.


Inspirado por Jung, que não considerava a imagem uma representação, Hillman distancia-se muito das relações “objetais” e de técnicas como a associação livre. Por exemplo, para nos aproximarmos de um sonho, devemos ficar o mais próximo possível das imagens que se apresentam, para podermos metaforizá-los, e não interpretá-los ou traduzí-los em um conceito qualquer. Não há nada por trás do fenômeno: a imagem acontece na superfície do discurso.


Parte do que a Psicologia Arquetípica está tentando fazer é seguir consequentemente Jung ao longo das linhas que ele abriu. Uma das linhas é a poética: a exploração do “fazer-alma” ou da imagem em palavras. Este é o objetivo da Psicologia Arquetípica: mover os sentidos literalizantes dos eventos em direção à experiência metafórica. A análise ou qualquer trabalho que utilize esta abordagem se colocará ao lado da produção das imagens, da busca de sua retórica, de seu modus operandi, de criar intimidade com suas repercussões metafóricas.


Hillman contesta que o trabalho com as imagens não apresenta relação com a subjetividade, acreditando que esta é possessiva. Assim como as imagens não são redutíveis aos aspectos da personalidade do indivíduo, também não podem ser reduzidas aos objetos da realidade externa: nem imago, nem representação. A imaginação tem uma realidade autônoma que transcende o indivíduo; as imagens provêm de uma realidade que ele nomeia de Mundus Imaginalis – mundo imaginal.


O termo Mundus Imaginalis foi trazido para a psicologia por Corbin, em 1972. Este termo é retirado da tradição mística e deve ser diferenciado de “imaginário”. Imaginário é algo oriundo do sujeito e tem característica representacional, enquanto a noção de imaginal é dissociável do sujeito, possui realidade própria, sui generis. Da exterioridade em um certo plano de existência é que consiste seu “corpo de aparição”. O imaginal é “apresentação”, e não “re-presentação”. O Mundus Imaginalis é o mundo das ideias-imagens.


Nessas tradições, o significado (conteúdo espiritual) enviado por Deus também é captado pelo homem por um tipo de imaginação ativa, cujo órgão é o coração. A perda da capacidade imaginal e a atrofia de seu órgão, o coração, levará ao esvaziamento do mundo exterior e interior e ao esgotamento de toda sua significação espiritual. (Cromberg, 2003).


Inspirado por tais ideias, Hillman (1981) insiste que o coração é o órgão da imaginação, e seu pensamento é aquele das imagens. Neste sentido, o autor separa a imaginação – como esfera transubjetiva do imaginal – do subjetivo, privilegiando a primeira. Ele propõe que, para um diálogo entre estas duas esferas, o ego precisa ter uma qualidade mais flexível, mais porosa ou menos heroica, para se deixar afetar e atravessar pelo politeísmo que se apresenta. Descentralizando o papel do ego ao considerá-lo apenas como mais uma imagem entre tantas, ele propõe uma relativização do discurso monoteísta, característica do ego a favor da imaginação.


Este é o Hillman do Pensamento do Coração e de outros textos da década de 1980, como Anima Mundi, que já ensaiava sua volta à Metafísica, explícita em Back to Beyond, Cosmology for Soul e seu cume (e cúmulo) em Código do Ser, anos mais tarde. Sustentando a proposta de que não há alma sem Metafísica, o autor afirma que a realidade da psique tem uma necessidade transcendental.


Quando Hillman ressalta que as imagens não têm relação com a subjetividade, mas com uma esfera que transcende o sujeito, ele quer dizer que elas não são possuídas por um eu. Parece que Hillman, às vezes, coloca o eu e o sujeito como idênticos, e definitivamente não são. Não precisamos considerar realidades transcendentais, pois, caso contrário, voltamos à mesma questão que o separou de Jung: a Metafísica. Ao falarmos de um sujeito do inconsciente, por definição, falamos de algo que é maior que o eu. Talvez aqui se apresente uma brecha na teoria hillmaniana, que muito raramente usa os termos sujeito e inconsciente.


Será necessário trabalhar com a noção de transcendência para pensar a questão do mundo imaginal? Entendemos por mundo imaginal um locus psíquico onde a alma aparece. Uma metaxy - espaço intermediário - uma região possibilitadora da imaginação. A alma é efêmera, ela não está em nenhum lugar, mas aparece como a luz da lua, emprestada ou refletida.

Na profundidade da subjetividade, não há um “eu”, como bem intui Deleuze (2007), mas sim uma composição singular, uma idiossincrasia, uma cifra secreta como a oportunidade única de que justamente tais entidades tenham sido as retidas, queridas, de que realmente a combinação tenha sido tirada, “essa” e não outra. Assim, o problema da Psicologia torna-se o seguinte: Quais são as entidades subjetivas e como elas se combinam? “Quem” são, e não de “onde” provêm.


“Quem?” é a pergunta chave na Psicologia Arquetípica. Esta é uma psicologia politeísta porque se refere à dissociabilidade inerente à psique e à localização da consciência em múltiplas figuras e centros (Hillman, 1976).


Dentro da tradição junguiana iniciada por Pierre Janet, ao considerar o caráter dissociacionista da psique e, a posteriori, a teoria dos complexos, o politeísmo psicológico proporciona um continente arquetípico para diferenciar a dissociação, pensando na interconexão entre deuses e deusas, e, assim, “re-significar” a patologia. Hillman chamará as personalidades periféricas ou “dissociadas” de “little people”: há sempre alguém em nós cantando em uma direção.


O fenômeno da dissociação sempre parecerá uma doença para o ego, caso não se considere o campo psíquico como um todo. Fora do imperialismo egoico, as partes ganham individualidade. Está fora de questão pensar numa psicologia sem ego, mas cabe questionar sua autoridade e hegemonia.


O modelo de ego heroico é questionado por Hillman, no Livro do Puer (1998), como um entre outros modelos alquímicos. Ele propõe o dragão como daimon da imaginação, e não algo a ser aniquilado. Parece que o modelo do herói serve a uma psicologia desenvolvimentista, no sentido de oferecer uma boa metáfora ao ego forte e destemido que, ao matar os aspectos sombrios, integra-os e amplia sua consciência.

Uma das funções do ego é mediar as experiências. Ele pode ser considerado um cavalo, um veículo, um barco, um corpo que carrega uma imensidão de personagens imaginais: desde um orixá velho do candomblé, uma dançarina esvoaçante, um animal louco e até uma mãe enciumada ou um marido zeloso. Um ego imaginal se conforta com mais de uma história para viver, ou morrer. Um ego heroico está identificado com um só mito: o da salvação.


Com sua fantasia do “Declínio de Roma”, de desintegração e paganização da sociedade, Hillman (1976) descreve que, quando o ego enfraquece, a consciência deixa de ser escrava do centro egoico, sendo liberada de sua identificação. Roma e as províncias, o centro e a periferia apresentam diferentes sistemas de valores, padrões de fantasias e graus de força. Mas o ego “central” não é mais consciente do que os estranhos estilos dos outros complexos. A consciência é “re-distribuída” e “re-interpretada” como estilos diferentes de consciência (Hillman, 1976, p. 44).


A consciência passa a não ser privilégio do ego. Ela é uma qualidade ou um estilo e, apesar de focal, pode estar em muitos lugares psíquicos, mas não ao mesmo tempo. Nos sintomas ou nas personificações dos complexos, por exemplo, temos um estilo muito preciso de consciência. Não é por acaso que nossas atitudes sempre nos levam para o mesmo lugar, para o beco escuro da Consolação cheio de ciganas e mulheres de rua, enquanto o que queremos mesmo é ir em direção ao Paraíso.


Jung diria que os deuses tornaram-se doenças. Poderíamos pensar, então, que, no sintoma, eles impõe um modo de consciência que vai sugerir uma característica específica de relação. O estilo de consciência está diretamente ligado a qual fantasia inconsciente o indivíduo está inserido. Por isso, trata-se mais de ir em direção à consciência da imagem do que tornar a imagem consciente.


Hillman propõe que os mitos são capazes de ofertar possibilidades metafóricas, capacidades de consciências e também de fantasias. Estas não têm a ver com os mitos em si, ou com seus conteúdos, mas elas agem com um senso mítico, um senso metafórico. O psiquismo opera por dispositivos míticos. A bricolage, a ciência do concreto, o pensamento mágico, o pensar por oposições, os deslizamentos semânticos são característicos de operações psíquicas.


Considerar os deuses como qualidades consiste em um sentido arquetípico. Quando o autor refere-se a estilos de consciência, ele considera que determinadas fantasias são regidas por específicos deuses. Por exemplo, o modo como Héracles entra no mundo dos mortos, com um tacape, é diferente do modo como Orfeu penetra o Hades, com uma lira. Ou ainda, o estilo de Dionísio participar das batalhas - fugindo para o mar - é diferente da atitude de Hércules, e assim por diante.


Os variados estilos seriam elementos metafóricos ou, como Hillman prefere chamar, seriam diferentes modalidades de consciência. São elementos com os quais só um ego imaginal pode se relacionar e suportar, por sua pluralidade e versatilidade.


Porém, ao sugerir estruturas míticas para formas variadas de consciências, será que Hillman não cai exatamente no que tanto critica nos junguianos? Considerar que a consciência pode assumir muitas formas é diferente de falar quais as formas que ela pode assumir. Precisamos ter cuidado para não fazer um uso tipológico da mitologia, que nos afasta do que ele mesmo chamou de um senso mítico, ou seja, considerar que a vida e os eventos são apresentados em uma narrativa que se aproxima da narrativa mítica, que é plural, simultânea, tem texto, contexto e tecedura, além de ser penetrada pela imaginação.


Referências:


DELEUZE G. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.

HILLMAN, J. An inquiry into image. Spring In: Spring Journal: Zurich, 1977, 1978, 1979.

-----------------. Suicídio e Alma. Petrópolis: Vozes, 1998

JUNG, C.G. (CW6) Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991 [1971].

---------------. (CW16/2) Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência. Petrópolis: Vozes, 1999 [1971].

PIERI, P. Dicionário Junguiano. São Paulo. Paulus, 2002.

QUINTAES, M. in MARLAN, S. Archetypal Psychologies: Reflections in honor of James Hillman. Lousiana, Spring Journal Books, 2008.

fonte: Himma: Estudos em Psicologia Imaginal
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Post by wodouvhaox Fri Jan 14, 2011 9:03 am

Apresentando James Hillman

por Carlos Bernardi

Nota editorial: capítulo da dissertação de mestrado intitulada "Senso Íntimo: Poética e Psicologia, de Fernando Pessoa a James Hillman, defendida em 1995 na Universidade Federal Fluminense.

Igualmente difícil é apresentar a obra e a pessoa de James Hillman. Em primeiro lugar, é uma obra vastíssima que caminha nas mais variadas direções, escrita em vários estilos, com uma profusão de notas de rodapé, tudo com a intenção de fazer justiça à riqueza e pluralidade do psiquismo, e por um autor que confessadamente diz adorar escrever. Em segundo lugar, ele traz à tona formas e maneiras de se conceber o mundo e o homem que, de certa forma, são bastante estranhas ao pensamento atual, tentando, em suas palavras, recapiturar uma antiga direção. Em terceiro lugar, no que diz respeito à sua biografia, os dados que temos são em número ínfimo, porque, segundo Hillman, as idéias são mais importantes do que o homem. Além do mais, não acredita em biografia explanatória, preferindo falar das coisas em que esteve envolvido, num uso quase que parabólico dos eventos e das experiências vividas.

Em seu livro "Entre Vistas" cita como modelo de "biografia" a que Carl Gustav Jung publicou com o título "Memórias, Sonhos e Reflexões", onde o mais importante não são os fatos, mas as experiências. Isto será melhor compreendido quando, mais adiante, estabelecermos a diferença entre estes dois termos, fato e experiência, crucial para o bom entendimento do pensamento de James Hillman.

Importante para nosso trabalho é situar sua formação profissional. Novamente nossa fonte é seu livro "Entre Vistas". Estudou jornalismo, artes, literatura, filosofia ocidental e oriental, nos vários países em que viveu: Estados Unidos, seu país de origem; França; Irlanda; Índia; Suíça. Em Zürich, no ano de 1953, entrou para o Jung Institute, lá permanecendo por quase vinte anos. Nas grandes e ingênuas classificações da Psicologia, James Hillman é, portanto, "encaixado" como Junguiano. Sua postura, entretanto, não é nada ortodoxa. A atitude re-visionista e iconoclasta de suas idéias o impede de aderir dogmaticamente a qualquer corrente de pensamento.

De qualquer maneira, na grande lista das influências que a Psicologia Arquetípica recebeu, o nome de Carl Gustav Jung é colocado em primeiro lugar. O conceito dos arquétipos, padrões básicos e estruturais da psique, é um dos principais empréstimos. Contudo, uma discussão mesmo superficial sobre os arquétipos — conceito muitíssimo mal compreendido pelos críticos, extremamente mal formulado pelo próprio Jung, literalmente entendido por apressados estudantes e leitores da vasta obra de Jung — está fora de questão aqui. Iremos apenas citar, por sua clareza, um pequeno trecho do livro "The Passion of the Western Mind", de Richard Tarnas. Comparando o conceito de arquétipo com o conceito de "semelhanças familiares" formulado por Wittgenstein, Tarnas chega à seguinte formulação "pós-moderna" da idéia original de Jung:

Nesta concepção, os arquétipos são reconhecidos como padrões ou princípios duradouros que são inerentemente ambíguos e multivalentes, dinâmicos, maleáveis e sujeitos a diversas inflexões culturais e individuais, embora possuam uma distinta e subjacente coerência formal e universalidade.2

James Hillman, além do mais, faz uma pequena, mas fundamental modificação da classe gramatical na qual os arquétipos são tradicionalmente colocados. Quando, por exemplo, fala-se em "imagem arquetípica", as posturas clássicas junguianas entendem esta expressão como um indicativo de que esta determinada imagem está associada a um determinado arquétipo. Esta imagem passa a ter uma natureza diferente de outras imagens que não estejam associadas a um arquétipo. É este arquétipo substantivo que dá substância à imagem. Hillman pensa diferente. Ao invés de arquétipo como substantivo, ele concentra-se exclusivamente no arquetípico, em sua capacidade adjetiva. Toda imagem passa a ser arquetípica contanto que a ela seja associada uma idéia de valor. A intenção desse ato valorativo é tornar a imagem mais profunda, mais elaborada, mais envolvente, mais rica e mais necessária. Arquetípica é uma operação que dá importância e fecundidade a qualquer imagem. Arquetípico é algo que fazemos com a imagem e não algo que está na imagem.

A arte é uma terrível missão que deve ser cumprida "monasticamente", por isso só se pode escrever sinceramente, não no sentido menor de identidade ou correspondência entre poema e poeta, mas no sentido maior de escrever algo que contenha profundidade e importância. Nas palavras de Fernando Pessoa: "A finalidade da arte é elevar".3 No célebre oitavo poema do Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro demonstra, em suas andanças com o fugido menino Jesus, o que é esta sinceridade, através de uma atividade que as crianças e os deuses sabem fazer como ninguém, o jogo, misto de ficção e verdade profunda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta da casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.4

A importância do jogo é afirmada em todo seu extremismo, é um universo. Porém, mesmo assim, não deixa de ser um jogo. Se uma pedra cair, o máximo que acontecerá é deus e poeta porem-se a rir. A partícula ficcional "como se" está presente no poema. O "como se" é uma "complexa conjunção"5 que revela as ficções que existem em variados graus em todas as ciências, na opinião de Hans Vaihinger, autor do livro "A Filosofia do 'Como Se'". James Hillman mostra que, dos três fundadores da psicanálise, Sigmund Freud, Carl Gustav Jung e Alfred Adler, é justamente este último que mais relações estabelece entre Psicologia e a filosofia do "como se". Em seu estudo dedicado a Alfred Adler, Hillman vê no autor austríaco um precursor da "consciência pós-moderna", na medida em que substitui os sistemas "metapsicológicos" de Freud e de Jung por uma atitude que busca revelar as ficções dos sistemas, desliteralizando-os, apontando a perda da capacidade destes sistemas perceberem seus próprios "como se". É também interessante percebermos que, para Adler, o grau de loucura caminha lado a lado com um aumento do literalismo de suas crenças. Para Adler a pessoa normal é aquela que mantém uma postura metafórica diante de princípios e metas. O neurótico, por sua vez, substantiva estes princípios. Já o psicótico eleva-os à categoria de dogmas. Hillman comenta esta equação sanidade, loucura, ficção e dogma.

Se a progressão da sanidade em direção à saúde mental é distinguida pelos graus de literalismo, então a estrada terapêutica que conduz da psicose para a sanidade é aquela que retorna pela mesma passagem hermenêutica — desliteralizar. Para sermos sãos devemos reconhecer nossas crenças como ficções, e perceber as nossas hipóteses como fantasias.6

A atitude de Fernando Pessoa diante de sua obra caminha nesta mesma direção. O poeta se esforça em impedir que seus escritos transformem-se em verdades dogmáticas, abandonando, com isso, a perspectiva ficcional. Vemos, inclusive, dois sentidos para a palavra "sinceridade" em Fernando Pessoa. O primeiro, que discutimos mais acima, diz respeito ao valor do que escreve. Um segundo sentido surge na resistência de Fernando Pessoa em identificar literalmente o conteúdo de um poema com aquilo que o poeta, por ventura, esteja sentindo.

A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem a vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as cousas, podem levar o espírito a esta culminância.7

A necessidade de disciplina que o poeta aponta é fundamental para se manter a atitude do "como se", porque é muito difícil aceitar o sentido ficcional das nossas crenças. Acreditar, aceitar, acolher e prestar atenção à retórica das ficções é uma habilidade não encontrada com facilidade. Hillman gosta muito de citar o poeta americano Wallace Stevens que, certa vez, escreveu:

A crença definitiva é acreditar numa ficção, que você sabe ser uma ficção, nada mais havendo. A bela verdade é saber que é uma ficção e que você acredita nela de boa vontade.8

Insistimos nesta questão da diferença que Fernando Pessoa estabelece entre poema e poeta, por ser ela fundamental aos nossos estudos. Da mesma forma, será fundamental não esquecermos o "como se" para apresentarmos a segunda grande influência sofrida pela Psicologia Arquetípica. Trata-se de Henry Corbin, um dos maiores estudiosos do pensamento islâmico, em especial do sufismo e de seus filósofos-místicos Avicenna e Ibn 'Arabi. Coincidentemente, Henry Corbin já foi citado em um estudo sobre Fernando Pessoa. Dalila Pereira da Costa utiliza inúmeras vezes os ensinamentos do estudioso francês em seu livro "O Esoterismo de Fernando Pessoa". Contudo, a diferença que mencionamos mais acima, reaparecerá também na utilização diferente que James Hillman faz de Henry Corbin. Uma vez mais a literalidade do esoterismo será confrontada com a metaforicidade da ficção. Escreve a autora.

A posição ontológica, existencial e gnoseológica do poeta, em perfeita unidade de pensamento, aquela que imediatamente desponta nos anos de sua juventude, é a posição partilhada no esoterismo: o mundo visível é o invólucro do invisível, o que nós vemos é a imagem do escondido. Ao real sensível, corresponde sempre um outro transcendente, que cumpria atingir... O essencial para Pessoa, não está no primeiro plano da realidade.9

Concordamos que Fernando Pessoa tem um interesse num além do real, mas este além não é o além de que falam as religiões e posturas esotéricas. Nem este outro lado é revelado como numa espécie de delírio místico visionário, embora o próprio poeta confesse ter tido algumas experiências deste tipo. Mesmo assim, acreditamos que Fernando Pessoa desfaz suas próprias inclinações a este respeito, como se nunca permitisse que o ficcional escapasse de suas mãos. Fernando Pessoa foi muita coisa, mas nunca deixou de ser poeta, um poeta com interesses filosóficos. Portanto, se há semelhanças entre as experiências místicas e as experiências poéticas e psicológicas, elas irão limitar-se aos seus conteúdos, mas não às formas com que estes conteúdos serão experimentados. A Psicologia aceita o místico, para dele retirar o metafórico. Nas palavras de Hillman:

Quando Jacques Lacan advertiu, como é dito, que a psicanálise desapareceria caso a religião triunfasse, compreendo-o dizendo que a psicologia é impossível sempre que os significados literais triunfam, sempre que o teologizar rompa suas conexões com o psicologizar. Entretanto, essa ameaça está sempre presente.10

Retornando a Henry Corbin, muitas são suas contribuições. A principal delas é mais do que um simples empréstimo de palavra, já aparecida no capítulo anterior. Trata-se do conceito de imaginal, cunhado por Henry Corbin para traduzir a expressão alam-al-mithal, o lugar onde as visões e as histórias simbólicas aparecem, segundo o sufismo. A escolha de "imaginal" por Corbin possui seus motivos, pois negou-se a utilizar a palavra imaginário por ela carregar fortes sentimentos de irrealidade. Corbin não quis trair a experiência descrita pelos sufis, daí sua escolha por imaginal e não imaginário, visto que as imagens encontradas nestas experiências místicas são puramente reais, o que não quer dizer que sejam literalmente reais. "O imaginário pode ser inócuo; o imaginal nunca o pode ser".11

Este mundo de imagens, também chamado por Corbin de mundus imaginalis, é um intermédiário entre o mundo apreendido pelos sentidos e o mundo apreendido pelo intelecto. É um mundo que só pode ser "percebido" pela Imaginação Criativa que, segundo Corbin, não é apenas uma função mental, mas um verdadeiro órgão dos sentidos. Por seu intermédio, "o espiritual toma corpo e o corpo torna-se espiritual".12 Este duplo movimento é, para James Hillman, a essência do que denominou "a base poética da mente", pois seu esforço consiste em dar corpo às imagens e buscar as imagens nos corpos. Em um dos seus primeiros artigos críticos, intitulado "A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico", o jovem Fernando Pessoa raciocina de maneira muito próxima a Corbin e Hillman.

Para o poeta, a nova poesia que estaria surgindo, anunciando um Supra-Camões, seria uma mescla de poesia subjetiva e poesia objetiva. Por um lado é poesia da alma, poesia da vida interior, uma poesia complexa que busca "encontrar em tudo um além";13por outro lado, é uma poesia que se preocupa constantemente com a Natureza, uma poesia que se inspira na Natureza, daí ser também uma poesia objetiva. Estes dois elementos, Alma e Natureza, interpenetram-se produzindo, ao mesmo tempo uma "espiritualização da Natureza" e uma "materialização do Espírito",14 formulações quase sinônimas do título de um dos livros de Henry Corbin: "Corpo Espiritual e Terra Celestial". A esta mistura Fernando Pessoa denominou "transcendentalismo panteísta".

O trancendentalismo panteísta envolve e transcende todos os sistemas: matéria e espírito são para ele reais e irreais ao mesmo tempo, Deus e não-Deus essencialmente. Tão verdade é dizer que a matéria e o espírito existem como que não existem, porque existem e não existem ao mesmo tempo. A suprema verdade que se pode dizer de uma coisa é que ela é e não é ao mesmo tempo. Por isso, pois, que a essência do universo é a contradição — a irrealização do Real, que é a mesma cousa que a realização do Irreal —, uma afirmação é tanto mais verdadeira quanto maior contradição envolve. Dizer que a matéria é material e o espírito espiritual não é falso; mas é mais verdade dizer que a matéria é espiritual e o espírito material. E assim, complexa e indefinidamente...15

Que fabuloso jogo de oposições e contradições! Os famosos oximoros de Fernando Pessoa impedem que as coisas fiquem tranqüilamente definidas em seus lugares. Tudo se torna móvel e fluido. Dessa forma, não podemos dizer que os heterônimos existem, mas também não podemos afirmar que não existem. A saída deste impasse é se prender a ele, é nunca tentar escapar dele. Isto é feito através do jogo ficcional que o poeta chamou de fingimento, assunto, contudo, de outros capítulos.

Henry Corbin ainda nos ensina que as pessoas não possuem a mesma capacidade de discernimento. Alguns homens se prendem ao aspecto material e literal das coisas, o zahir; enquanto outros buscam um entendimento simbólico, o bastin. Podemos afirmar que tanto Fernando Pessoa quanto James Hillman buscam criar uma disciplina do batin, denominada pelo poeta de "senso íntimo" e pelo psicólogo de "cultivo da alma".

Por ora estamos satisfeitos com esta reflexão sobre Henry Corbin. Vamos continuar, pois, com o estudo das fontes da Psicologia Arquetípica. Iremos agora para a Grécia, ao encontro de um de seus obscuros habitantes. Como Fernando Pessoa, também repleto de contradições, paradoxos, oposições e oximoros: Heráclito de Éfeso.

De todos os fragmentos encontrados do filósofo, um deles é utilizado por James Hillman quase como epígrafe da sua psicologia.

Por mais que caminhe em todas as direções, jamais descobrirá os limites da alma, tão profundo é seu logos.16

Hillman comenta que, neste fragmento, Heráclito une alma (psyche), profundidade (bathun) e a complexa palavra logos num único período, tornando-as ligadas e necessárias umas às outras. Alma e profundidade estão intimamente relacionadas. O logos da alma, psico-logia, na opinião de Hillman, é a capacidade de penetrarmos na profundidade das coisas.

Outro fragmento importante para a Psicologia Arquetípica é o de número 123.

A real constituição de cada coisa está acostumada a ocultar-se.17

Para Hillman, a inclinação da alma pelo profundo expressa-se nesta busca pelo oculto, na busca do além, segundo Fernando Pessoa. Porém, não devemos esquecer que por oculto devemos entender todo um trabalho que deve ser realizado sobre as coisas enquanto reveladas através de suas formas. Além de uma nova poesia, nascida da união entre poesia subjetiva e poesia objetiva, temos igualmente uma nova psicologia, que surge no momento em que nos amigamos às imagens e nos prendemos ao seu texto como nos é revelado. Igualmente, não devemos esquecer que oculta não está a verdade do texto, mas suas possibilidades de leituras.

Por último, o próprio Hillman, num importante artigo, estabelece seus precursores. São três: Plotino, Marcílio Ficino e Gianbatista Vico. Os três filósofos pertencem a uma linhagem neo-platônica, cuja característica marcante é o movimento de ver através das realidades literal e pessoal. Estas realidades, imóveis em suas certezas, são substituídas por um jogo imagético-metafórico-retórico, embora o neo-platonismo se prenda muito a posturas alegóricas. Hillman está em busca do espírito do neo-platonismo, não das suas teses em si.

O que encontramos nos três filósofos é a importância dada à alma e à imagem. O conceito, em geral, vinculado à razão, fica em segundo plano. A psicologia que Hillman propõe é uma psicologia da alma e da imagem. Neste sentido, segue Carl Gustav Jung quanto este diz que psique=imagem. A própria palavra psicologia é decomposta em logos da psique para re-significar psicologia como estórias ou discursos da alma através das imagens. Hillman pega emprestado a idéia sufi de recital, a narrativa das experiências vividas no imaginal, como ensina Henry Corbin, para definir a Psicologia como a capacidade de ouvirmos o que as imagens estão a nos dizer.

Todos aqueles que se juntam a Hillman unem-se em torno da importância dessas duas palavras. Isto podemos perceber de maneira inequívoca quando Edward Casey, filósofo que habita este campo de pensamento, diz que imagem não é aquilo que vemos, mas sim como vemos. Para ver uma imagem não basta termos percepções. Algum processo psíquico deve se intrometer nesta atividade para que possamos dizer que estamos lidando com imagens e não com percepções. Este processo é a alma.

Embora não seja ainda o momento de nos aprofundarmos no que James Hillman entende por alma, é importante darmos mais algumas informações. Hillman reutiliza a partição tradicional do ser em espírito-alma-matéria para buscar fundamentar a essência da psicologia.

A alma é vista como um terceiro, um intermediário entre o espírito e a matéria. A alma cria um intervalo de reflexão, um intervalo de leitura, entre as certezas espirituais e materiais. Ela permite o estabelecimento de um jogo, no sentido que Jacques Derrida entende esta palavra. Uma certa contradição poderia surgir aqui. Derrida mostra-nos que o jogo só é aceito por Platão mediante um severo controle pela ética e pela política. Com isso, passa a ser apenas um divertimento e só como divertimento ele pode ser aceito e permitido. Caso compartilhasse a argumentação platônica, a Psicologia Arquetípica destruiria sua concepção básica da autonomia da alma. Por mais que cite Platão e os Neo-Platonistas, James Hillman busca uma relação psicológica com suas idéias e não uma busca de verdades e explicações. Ele não está interessado na verdade de uma idéia, de uma concepção, mas está interessado nas fantasias subjacentes às idéias e concepções. Por este motivo podemos encontrar, em seus escritos, estudos sobre as relações das pessoas com os insetos, elocubrações acerca da concepção que a masturbação enfraquece a mente, tese difundida no século passado, mas que encontramos com facilidade ainda hoje e, só para utilizarmos mais um exemplo de muitos possíveis, as várias fantasias que alimentam as concepções ocidentais sobre o coração.

Podemos esclarecer dessa maneira a diferença entre estas três categorias. Aquilo que a perspectiva material afirma é uma verdade categórica. Um vaso de flores é apenas um vaso de flores. Está à minha frente e posso tocá-lo. Igualmente, o que a perspectiva espiritual afirma é também uma verdade categórica, literal. Um santo, em êxtase, pode voar. Esta afirmação não é uma imagem, é um fato. Espírito e matéria são inexoráveis em suas constatações. A alma entra transformando qualquer uma das duas realidades em imagens. O voar do santo não precisa ser verdadeiro. O jarro de flores diz mais do que ser um simples vaso de flores. A alma permite que joguemos com estas imagens, exatamente por transformá-las em imagens. Em resumo, a alma permite-nos um olhar poético sobre o mundo.

Um exemplo do embate entre matéria e espírito, podemos encontrar nas discussões e investigações entre cientistas e religiosos quando surge alguma imagem de Santa "chorando". É um choro verdadeiro? Um milagre, uma teofania, que transformaria o local em centro mundial de peregrinação? Ou as lágrimas não passariam de humidade absorvida pelo material poroso com que a Santa foi fabricada, expelida sob a forma de gotas? Charlatanismo? No meio desta luta encontram-se os fiéis, com sua teologia popular ávida e necessitada de milagres. Não pensam: "vamos supor que a Santa estivesse chorando, vamos jogar com esta possibilidade, vamos buscar respostas a este choro". Cada qual iria encontrar as suas. Cada qual iria fazer sua leitura do evento. Falta-lhes, contudo, a perspectiva da alma, que colocaria todos no modo ficcional, ou seja, na capacidade de criarmos ficções e acreditarmos nelas, capacidade que James Hillman denominou fé psicológica.

James Hillman retira a psicologia do modelo médico e positivista, com sua ênfase no eu e no desenvolvimento, para vê-la como uma forma de arte, cujo objetivo é cultivar a alma, cultivar uma relação cada vez mais intensa e profunda com ela. O movimento em direção à alma é um movimento de interiorização. Esta interiorização não deve ser entendida como o interior do homem, mas sim o interior das coisas, de todas as coisas. Hillman resgata a antiga idéia da anima-mundi, a alma do mundo, para mostrar que tudo possui alma, que em tudo é possível haver interiorizações. Cultivar a alma é, portanto, entrar gradualmente em contato com a base poética da mente, expressão utilizada por Hillman para apontar o caráter imagético do psiquismo. Poesia e mito são os meios genuínos de expressão da alma.

O dado com o qual a Psicologia Arquetípica tem início é a imagem. A imagem foi identificada com a psique por Jung ("imagem é psique" — CW 13, par. 75), uma máxima que a Psicologia Arquetípica elaborou para entender que a alma é constituída de imagens, que a alma é primariamente uma atividade imaginativa, nativamente e paradigmaticamente apresentada pelo sonho. Pois é no sonho que o próprio sonhador atua como uma imagem entre outras e onde pode legitimamente ser mostrado que o sonhador está na imagem em vez da imagem no sonhador.18

Retornamos, agora, à apresentação da contribuição dos três precursores, Plotino de Roma (século III d.c), Ficino de Florença (século XV) e Vico de Nápoles (século XVIII). Em todos eles alma, imagem e imaginação constituem temas centrais de suas filosofias. Plotino falava da multiplicidade de consciências habitando uma mesma pessoa. Ficino propunha uma contra-educação, por meio da qual ensinar-se-ia a "existência independente do funcionamento psíquico"19. Este funcionamento era considerado como ocorrendo separado do corpo. Hillman esclarece, contudo, que a idéia de corpo, na tradição neo-platônica, diz respeito a um modo de ver o mundo, ou seja, um modo literal, material, inconsciente de outros significados. Gianbatista Vico, o grande crítico de Descartes, anti-positivista, contribui para a Psicologia Arquetípica com suas elaborações acerca do pensamento metafórico. Para Vico, este tipo de pensamento é primário e se manifesta nas principais realizações culturais do homem. É interessante destacarmos que Vico mantinha diálogos imaginários com quatro grandes autores, Platão, Tácito, Grotio e Bacon. E via Homero como um estado mental, um estilo de consciência, ou, nas palavras de Fernando Pessoa:

Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por onde se note que existiu Homero.20

Dada a importância central da alma na Psicologia Arquetípica, que levou James Hillman a estabelecer como os objetivos da terapia o cultivo desta alma, processo que denominou criatividade psicológica, o mito básico que informa e modela sua psicologia é o mito de Eros e Psique. Hillman vê a escolha, pela psicanálise, do mito de Édipo como o mito básico do psiquismo, condicionada mais a fatores históricos do que estruturais. Do final do século passado, quando a psicanálise foi inventada, até nossos dias, a atitude da cultura diante do psiquismo mudou bastante. Falar de desejos inconscientes, do complexo de Édipo, de conflitos e ansiedade tornou-se corriqueiro. Já não há tanta resistência a mergulharmos nas profundezas de nossas almas como havia no século XIX. Não é mais preciso que o psiquismo seja decifrado pelo esforço heróico da consciência. Já pode ser amorosamente buscado por esta mesma consciência. As épocas possuem seus respectivos mitos subjacentes.

O mito de Eros e Psique nos é apresentado por Lucius Apuleios, poeta helenístico do século II d.c., em seu livro "O Asno de Ouro". Ele conta a estória da bela Psique, filha de reis. Todos os homens a adoravam, tal a magnitude de sua beleza, chegando a dizer que ela era uma nova encarnação de Vênus, agora não mais nascida das águas, mas da própria terra.

O mito conta que a ciumenta e violenta Vênus, deusa do amor, não gostando do que estava acontecendo, visto que o culto da nova deusa estava levando ao abandono de seus próprios templos, resolveu vingar-se de sua mortal concorrente. Chamou seu filho Eros, o jovem alado que espalhava alegria e terror entre homens e deuses, dando-lhe a tarefa de fazer Psique se apaixonar pelo mais vil dos homens.

Psique, para espanto da lógica, não tinha pretendentes. Enquanto suas duas irmãs, que nem de longe aproximavam-se de sua beleza, já se estavam casando.

Eros, pronto para cumprir o pedido de sua mãe, aproximou-se de Psique. Contudo, diante de tanta beleza, ele próprio ficou atordoado. Espetando-se em suas próprias flechas, intoxicou-se de amor, apaixonando-se perdidamente por Psique.

O rei, preocupado com o destino de sua filha, consultou os oráculos. Foi informado de que sua filha devia ser preparada para as núpcias da morte: teria que ser levada ao alto de um penhasco e ali deixada, pois um terrível monstro viria desposá-la. Ninguém sabia, mas o monstro chamava-se Eros.

Psique foi levada pelos ventos para a base do penhasco. Lá encontrou um palácio ricamente construído onde todos os seus desejos eram atendidos por vozes. À noite, Eros visitava sua esposa oculto pela escuridão e pelo anonimato. Amavam-se e Eros prometia a Psique que este paraíso duraria, contanto que ela jamais tentasse conhecê-lo.

Um dia, instigada pela inveja de suas irmãs, Psique preparou-se para descumprir o pedido. Percebendo que Psique desconhecia o marido, retrataram-no como uma serpente que iria devorá-la quando chegasse o momento propício. Armada de uma faca e de uma lamparina à óleo, Psique aguardou o amante. A noite mais uma vez o trouxe. Amaram-se como de costume. Após Eros ter adormecido, Psique começou a agir. Pegou o punhal para cortar a cabeça do monstro, como as irmãs haviam ensinado e acendeu a lamparina para melhor iluminar o caminho de seu gesto. Para seu espanto, ali deitado não estava um monstro, mas o próprio deus do amor, lindo e jovem. Psique encantada tentou beijá-lo. Com a inclinação do corpo, deixou cair uma gota de óleo sobre o ombro do amado. Eros acordou descobrindo-se traído. Pegou sua aljava e partiu voando, terminando sua relação com Psique.

Desesperada, vendo que era impossível alcançar o amante alado, tentou se matar jogando-se num rio. Mas o deus Pã impediu-a. Deu-lhe um conselho: feridas de amor só se curam com amor. Psique decidiu, então, procurar Vênus para tentar recuperar o Amor.

Por ordem da própria deusa, Psique foi torturada: beliscões, puxões de cabelo, espancamentos. Mas Vênus aceitou entregar-lhe seu filho, que neste momento se encontrava preso, contanto que conseguisse realizar quatro tarefas. Separar, no prazo de um dia, um monte de sementes de acordo com tamanho e espécie. A segunda tarefa era pegar alguns punhados de lã dourada dos violentos carneiros do deus Sol. A terceira, encher um frasco com a água de uma fonte que brotava no alto de um rochedo guardada por dois dragões. Por último, ir ao mundo dos mortos e pegar com Perséfone, a rainha do reino, uma caixa contendo a beleza da morte. Psique, ajudada por várias figuras, foi bem sucedida em suas três primeiras tarefas. Na quarta, tudo corria bem até que, de posse da caixinha com tão valioso conteúdo, a própria Psique pensou em ficar com esta beleza, ao invés de entregá-la a Vênus. Abrindo a caixa uma nuvem faz tombar Psique com um sono mortal.

Paralelamente à realização destas tarefas, Eros curou-se de sua ferida. Já fortalecido, conseguiu escapar de seu confinamento. Voando, encontrou Psique caída ao solo, derrotada pelo sono letárgico. Pegou uma de suas flechas e espetou Psique, que foi, dessa maneira, despertada pelo amor. Eros a conduziu ao Olimpo, pedindo que Júpiter intercedesse a seu favor. Com sua ajuda, pôde então, oficializar seu casamento com Psique. Mais tarde tiveram uma filha que recebeu o nome de Volúpia.

Estes são os aspectos principais do mito. Vejamos o que James Hillman tira de importância dele.

Em linhas gerais, o mito se refere ao despertar da alma (Psique) através do amor, reconhecendo a alma como o fator interno que leva às profundezas aludidas por Heráclito. Através da atenção amorosa dada ao psiquismo, como a que ocorre no processo psicoterápico, a alma começa a desenvolver-se e a revelar-se. Para Hillman, é o "mito fundamental da criatividade psicológica".21 O mito narra o que acontece entre as pessoas e dentro das pessoas. Mostra também que o desenvolvimento de Psique não ocorre num mar de rosas. Sofrimento, tortura, depressão, tentativas de suicídio, desânimo são vivências fundamentais de todo o processo. Eros, o amor, é retratado como um grande torturador e não como um querubim bondoso. É um processo difícil e cheio de obstáculos. O belíssimo poema de Fernando Pessoa, Eros e Psique, resume a problemática aludida.

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino —
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.22

O poema revela que tanto o eu como o outro são despertados pelo mesmo procedimento. O amor pela alma é o amor pela minha alma e pela alma do outro, descobrir um é achar o outro, mesmo que esse processo se dê, a princípio, inconscientemente. A imagem da estrada, obscura e cheia de muros, é especialmente importante, pois o que caracteriza a experiência da alma, para Hillman, é o fato dela não abdicar do sofrimento que encontramos em nosso caminhar pelo mundo. Portanto, mesmo tomando emprestado o termo de Henry Corbin, imaginal, Hillman o concebe de forma diferente daquela descrita por Corbin. O imaginal, na disciplina espiritual do sufismo, é habitado por imagens angelicais carregadas de emoções positivas. O imaginal, como ententido por Hillman, além dessas imagens, também é composto por imagens aflitas, grotescas, patologizadas, sofridas. Hillman não separa a experiência da alma de emoções e vivências das quais não gostamos muito: traição, suicídio, depressão, angústia, repetição, imutabilidade, imobilidade, morte são temas estudados por sua Psicologia, não em busca de sua cura, mas em busca de sua retórica. A poesia de Fernando Pessoa, principalmente a ortônima e a assinada por Álvaro de Campos, fornecem uma base poética a esta concepção de mundo, como neste poema.

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a mor- te,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedo- tas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera casusa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calcu- las...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que esteja muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que mor- reste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes por ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhu- ma?23

Este poema, aqui citado longamente, mas não em toda sua extensão, lembra-nos os ensinamentos do mestre Alberto Caeiro, mas com uma dosagem muito maior de angústia, enquanto que em Caeiro parece mais uma aceitação. Este é uma das experiências fundamentais a que a obra de Fernando Pessoa nos conduz, a experiência da morte e da nossa delicada situação existencial. Se as leituras esotéricas de sua obra apontam ou enfatizam momentos em que o poeta versifica o desejo de um além, poetiza uma continuidade post-mortem, ele o faz por estar absolutamente consciente da morte, sem quaisquer certezas ou seguranças. O poema que acabamos de citar nos esmaga, revelando nossa insignificância. A morte é um quarto golpe ao narcisismo do homem, que junto com os de Copérnico, Darwin e Freud, une-se para formar a base a partir da qual alguma coisa pode efetivamente ser construída.

A experiência da morte é absolutamente necessária para o cultivo da alma. É um dos temas mais freqüentes na obra de James Hillman. Pensar na vida é igualmente pensar na morte, pois uma só tem sentido em relação com a outra. Mas isto constitui, para Hillman, uma de nossas grandes dificuldades. Em um de seus livros escolhe o suicídio como objeto de estudo, por ele ser uma das situações mais extremas que podemos encontrar para experimentarmos a morte. É claro que Hillman enfatiza a importância da experiência da morte e não a morte literal, embora admita que para termos a primeira, muitas vezes é preciso corrermos o risco de nos deparar com a segunda. A morte se apresenta para pensarmos profundamente a vida, o que nem sempre ocorre.

O impulso para a morte não necessita ser concebido como um movimento anti-vida; pode ser uma demanda por um encontro com a realidade absoluta, uma demanda por uma vida mais plena através da experiência da morte.24

A morte nos leva a preocupar-nos com coisas essenciais. O envolvimento poético de Fernando Pessoa com o mundo revela este interesse pelo essencial, como já tivemos a oportunidade de mostrar.

A morte é uma grande metáfora que, como toda metáfora, aponta em várias direções. Ele próprio ofereceu algumas possibilidades. Por morte entende o Hades da mitologia grega, com seus dois aspectos. Por um lado riqueza: o Hades é rico em imagens. Por outro lado, estas imagens não se transformam em ação. Elas revelam uma perspectiva puramente psíquica, pois as imagens não têm corpo concreto. São capazes de contar estórias, mas são incapazes de agir. Toda a literatura pode ser avaliada por este ponto de vista. Por isso, Fernando Pessoa sente-se aliviado em relação a Álvaro de Campos, pois sua poesia é uma experiência psíquica que não é concretizada em ações no mundo exterior, caso contrário, "cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico em mim) seria um alarme para a vizinhança".25 Por isso, James Hillman, ao comentar que o problema do suicídio é seu literalismo, conclui que o "literalismo é suicida".26Quem morre é o ser poético, mesmo literalmente, como aconteceu com Mário de Sá-Carneiro, o grande amigo do poeta.

A ausência de ação, a busca de imagens (e não percepções), a associação entre mundo dos mortos e invisibilidade, todos estes atributos são encontrados no poema dramático "O Marinheiro" de Fernando Pessoa. O drama se passa num castelo antigo. Uma donzela morta é velada por outras três donzelas. Este culto da morte se dá num quarto circular, onde há apenas uma estreita janela. Por ela, entre dois montes, pode-se ver um pequeno trecho de mar. É noite e tudo está absolutamente imóvel. Uma das veladoras começa a contar um sonho que teve. Um marinheiro perdeu-se numa ilha longínqua, sem condições de voltar à sua terra natal. Como sofria toda vez que se lembrava de sua pátria, pôs-se a inventar uma que nunca teve. Sonhava esta nova pátria em todos os instantes por vários anos. "Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível...".27O marinheiro criou cidades, ruas, casas, gentes, portos, companheiros, infâncias, etc. Um dia, porém, o marinheiro cansou-se de sonhar. Quis recordar sua velha pátria, mas descobriu que não se lembrava de mais nada. Depois veio um barco que passou pela ilha, mas o marinheiro lá não estava. Uma das veladoras pergunta: "Talvez tivesse regressado à Pátria... Mas a qual?".28 Descobrimos que o Hades, o mundo dos mortos, é o mundo dos sonhos. Descobrimos também, como nos ensinou Heráclito, que há sonhos dentro de outros sonhos dentro de outros sonhos dentro de outros sonhos... Alma é profundidade. Não podemos encontrar seus limites.

TERCEIRA — Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?

SEGUNDA — Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.

PRIMEIRA — Ao menos, como acabou o sonho?

SEGUNDA — Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?... Não me faleis mais... Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia... Vede: vai haver o dia real... Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?... Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... Não falemos mais disto, nem a nós próprios... É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.29

Fernando Pessoa denominou este texto de drama estático ou teatro estático, onde o enredo não se transforma em ação nem as figuras se movem. Mas há "a revelação das almas através das palavras trocadas".30Este drama estático é, em parte, semelhante ao que Hillman tenta com seus objetivos psicoterápicos: uma transformação radical da consciência, abandonando suas preocupações exclusivamente diurnas, para mergulhar no mundo noturno das imagens psíquicas, com a intenção de ouvir suas estórias com um ouvido poético, "reconhecendo que toda realidade, não importa de que espécie, é, antes de tudo, uma imagem da fantasia psíquica".31

Toda a psicologia de James Hillman tem como objetivo nos tornar capazes de suportar e aceitar as expressões da alma como ela é, não como gostaríamos que ela fosse. Abandona as fantasias de desenvolvimento, de cura, de totalidade e plenitude, em troca de uma perspectiva que nos faz mergulhar na dor do mundo e na dor do ser (no ser do ente), com seus conflitos e ambigüidades. O homem inserido no mundo. Sua alma fazendo parte da alma do mundo.

Em qualquer perspectiva há algo que não funciona. Em tudo há um sofrimento, uma limitação. Hillman chamou esta experiência de "infirmitas". Toda escolha envolve uma infirmitas. Talvez possamos compreender melhor as dificuldades pessoais de Fernando Pessoa, aceitar melhor suas abdicações. Aceitar melhor nossas abdicações, que uma psicologia baseada na idéia de crescimento, desenvolvimento e normalidade não nos permite.

Dessa forma, aspectos "positivos" e "negativos" de qualquer vivência estão intrinsecamente relacionados. Não podemos obter um, sem vivenciarmos o outro. Isto talvez explique, ou contribua com outra explicação para as cartas de amor ridículas , como diz Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa para Ophélia Queiroz.

Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo... Meu Bebé para sentar ao colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para... (e depois o Bebé é mau e bate-me...) "Corpinho de tentação" te chamei eu; e assim continuarás sendo, mas longe de mim.

Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boca do Nininho... Vem... Estou tão só, tão só de beijinhos...

***

Bebezinho do Nininho-ninho:

Oh!

Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh!

E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.

Oh! O Nininho é pequinininho!

Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis ho'as.

Amanhã, a não sê qu'o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia (isto é a meia das cinco e meia).

Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Belém, sim? Sim?

Jinhos, jinhos e mais jinhos.32

A infantilidade destas cartas é muito comentada. Mas será que são diferentes de outras cartas de amor? E se são, quem está errado: Fernando Pessoa que escreve cartas de amor ridículas, ou alguém, que nunca se permitiu ser ridículo escrevendo cartas de amor? Além do mais, os críticos tiram conclusões acerca da sexualidade de Fernando Pessoa unicamente baseados nas cartas. Na verdade, ninguém sabe o que acontecia nos encontros entre o poeta e sua amada. Mas, acreditamos, que as reticências, "...", que aparecem em trechos de várias cartas são bastante eloqüentes. Mas, acreditamos, namorar Fernando Pessoa não devia ser tarefa simples.

Antônio Quadros cita duas dessas interpretações. David Mourão-Ferreira julga que o uso das expressões Bebé, Bebezinho, Bebé pequenino, Bebé-anjinho, etc. eram conjuros mágicos com a intenção de que Ophélia permanecesse no estado de mítica infância. Na mesma linha de pensamento, Yvette Centeno escreve que Fernando Pessoa não podia ver sua amada exceto como criança. "Pois como mulher poria em risco o seu próprio equilíbrio, todo feito de recusa, e não de aceitação do outro e de si mesmo".33

Sem dúvida, são leituras possíveis, mas não as únicas. A relação de Fernando Pessoa com a mulher ou com o casamento, que acreditamos ser mais básico aqui, é muito mais complexa do que parece. Além do mais — este é o ponto miticamente enfatizado por James Hillman em relação ao amor —, a experiência amorosa traz uma sensação de revitalidade juvenil, com brincadeirinhas, vozes infantis, chorinhos, demonstrações pueris de coragem, valorização de objetos ridículos como o celofane do primeiro bombom compartilhado, que é guardado como tesouros de inestimável valor, ou então, o cartão que acompanha o valioso presente, talvez mais importante do que ele próprio. Por isso, os gregos representaram acertadamente este encontro sob a forma de duas crianças, Eros e Psique. Para Hillman, não podemos experimentar a energia renovadora das imagens da infância, sem experimentarmos igualmente o infantilismo a ela associado. Comentando sobre a importância dos estórias para crianças, escreveu.

Ser adulto passo a significar ser adulterado com explicações racionalistas, e evitar infantilidades como as que encontramos nos contos-de-fadas.34

Como dissemos no começo deste capítulo, a obra de James Hillman é vastíssima e multi-direcionada.

2 Tarnas, Richard. The Passion of the Western Mind, págs. 405-406.

3 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 226.

4 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 211.

5 Vaihinger, Hans. The Philosophy of 'As If', pág. xli.

6 Hillman, James. Healing Fiction, pág. 111.

7 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 240.

8 The final belief is to believe in a fiction, which you know to be a fiction, there being nothing else. The exquisite truth is to know that it is a fiction and tha you believe in it willingly. Citado in Hillman, James, Healing Fiction, p. IX.

9 Costa, Dalila L. Pereira da. O Esoterismo de Fernando Pessoa, págs. 33 e 34.

10 Hillman, James. On Paranoia, pág. 39.

11 Corbin, Henry. Spiritual Body and Celestial Earth, pág. X.

12 Corbin, Henry. Creative Imagination in the Sufism of Ibn 'Arabi, pág. 4.

13 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 384.

14 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 386.

15 Pessoa, Fernando, Obra em Prosa, pág. 393.

16 Heráclito. Citado in: Hillman, James. The Dream and the Underworld, pág. 25. Outras traduções deste fragmento são as seguintes. Emmanuel Carneiro Leão: "Não encontraria a caminho os limites da vida mesmo quem percorresse todos os caminhos, tão profundo é o Logos que possui."; Rodolfo Mondolfo: "Los límites del alma, por más que procedas, no lograrías encontrarlos aun cuando recorrieras todos los caminos: tan hondo tiene su logos"; G. S. Kirk: "Não é possível descobrir os limites da alma, mesmo percorrendo todos os caminhos: tão profunda medida ela tem".

17 Heráclito. Citado in: Hillman, James. The Dream and the Underworld, pág. 26. Os outros autores citados, traduzem desta forma este fragmento. Emmanuel Carneiro Leão: "Surgimento já tende ao encobrimento"; Rodolfo Mondolfo: "Según Heráclito, la naturaleza suele ocultarse"; G. S. Kirk: "A verdadeira constituição das coisas gosta de ocultar-se".

18 Hillman, Archetypal Psychology, pág. 6.

19 Hillman, Plotino, Ficino and Vico as Precursors of Archetypal Psychology, p. 155.

20 Pessoa, Obra em Prosa, p.147.

21 Hillman, James. The Myth of Analysis, pág. 55.

22 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág.

23 Pessoa, Fernando. Obra Poética, págs. 357-359.

24 Hillman, James. Suicide and the Soul, pág.63.

25 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 94.

26 Hillman, James. Suicide and the Soul, pág.13.

27 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 446.

28 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 447.

29 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 448.

30 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 283.

31 Hillman, James. The Dream and the Underworld, pág. 137.

32 Pessoa, Fernando. Obras de Fernando Pessoa, Vol. II, págs. 241 e 248.

33 Centeno, Yvette. Fernando Pessoa, Ophélia-bebézinho ou o horror do sexo. In: Colóqui-Letras, nº 49, Lisboa, maio de 1979, pág. 16. Citado em: Quadros, António. Fernando Pessoa: Vida, Personalidade e Génio, págs. 176-177.

34 Hillman, James. A Note on Story, pág. 3.

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Post by wodouvhaox Fri Jan 14, 2011 9:11 am


Alma e Espírito
James Hillman (livro citado, capítulo 6)

Se imaginar é uma atividade inata da anima mundi, então a fantasia está sempre acontecendo e não está sujeita a uma epoché fenomenológica (Husserl: separar ou colocar em evidência no sentido de mover-se diretamente para o evento em si). Mais ainda, se a fantasia está sempre acontecendo, então epoché é uma fantasia em si: de isolamento, de objetividade, e de uma consciência que pode ser verdadeiramente mobilizada pelos fenômenos como eles são. A psicologia arquetípica sustenta, contudo, que não podemos nunca ser puramente fenomenológicos ou verdadeiramente objetivos. Nunca es está além do subjetivismo dado pelos dominantes das estruturas de fantasia inerentes à alma. Estes controlam as perspectivas subjetivas e as organizam em “instâncias”, de tal modo que a única objetividade que pode se tornar mais próxima resulta do olho subjetivo voltado para si mesmo, observando seu modo de olhar, examinando sua própria perspectiva com relação aos sujeitos arquetípicos, os quais estão neste momento direcionando nosso modo de ser no mundo dos fenômenos. A psicologia, como uma ciência objetiva, será sempre impossível, uma vez que se reconhece que a objetividade em si é um gênero poético (semelhante ao “escritor-como-espelho” do naturalismo francês), um modo de construir o mundo, de tal forma que as coisas aparecem puramente como coisas (sem face, animação, ou interioridade), sujeitas à vontade, separadas umas das outras, mudas, sem sentido ou paixão.

Há uma posição que é particularmente obstinada em prender-se à fantasia de que a fantasia está sempre acontecendo, e essa é a instância do espírito. Aparece como objetividade científica, metafísica ou como teologia. E quando a psicologia arquetípica criticou essas abordagens foi como parte de uma estratégia mais ampla para distinguir os métodos e a retórica da alma daqueles do espírito, de tal forma que a alma não seja mais obrigada a abrir mão do seu estilo para preencher as obrigações requeridas por uma perspectiva espiritual, quer seja filosófica, científica ou religiosa. Pra que a psicologia seja possível é precisa que se mantenha a diferença entre alma e espírito (Hillman, 1976; 1975ª, pp. 67-70; 1977a).

Algumas vezes a posição do espírito com sua retórica de ordem, número, conhecimento, permanência e lógica autodefensiva foi discutida como “senex” e saturnina (Vitale, 1973; Hillman 1975d); outras vezes, por causa da sua retórica de claridade e observação independente, foi discutida como apolínea (Hillman, 1972c); em outras ocasiões, devido à sua retórica de unidade, fundamentalidade, identidade, foi denominada “monoteísta”; e em outros contextos ainda, de “heróica” e também de “puer” (1967b).

Ao reconhecer que a perspectiva do espírito deve situar-se em posição superior (como a alma situa-se em posição inferior) e deve falar em termos transcendentes, fundamentais e puros, a psicologia arquetípica concebe como sua tarefa imaginar a linguagem espiritual da “verdade”, da “fé”, da “lei”, e assim por diante, como uma retórica do espírito, mesmo que o espírito seja obrigado, por essa mesma retórica, a tomar sua posição verdadeira e fielmente, isto é, literalmente.

Mais ainda, a diferença entre alma e espírito protege a terapia psicológica de ser confundida com disciplinas espirituais – orientais ou ocidentais – e dá ainda uma outra razão para a psicologia arquetípica evitar empréstimos de técnicas de meditação e/ou condicionamentos operantes, os quais conceituam eventos psíquicos em termos espirituais.

fonte: Hipno-Campus Parrachiano
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